quinta-feira, fevereiro 03, 2005

E se um terapeuta lhe oferecer terapia, isso é Impul(o)e - pensamentos e delírios sobre o que é um adolescente

Writen das Freud





“vamos por aqui não porque tenhámos excluído todas as outras opções, elas estão simplesmente em suspenso, porque quando tens a heroína não precisas de mais porquês”

Trainspotting

Crianças... ou melhor... adolescentes... ; )
Já não são meninos e meninas bem-comportados, não têm as necessidades de protecção que tinham, já não têm o desejo de agradar aos pais, já não se protegem na mãe dos exageros do pai, já não são dependentes da aprovação. É uma questão de lógica: quantos anos de anúncios orientados prá valorização do indivíduo são pracisos pra fazer com que uma criança perceba que “tem” de ser um adulto. Aliás, fico surpreendido por ainda existirem miúdos de 11 anos com comportamentos normais quando tudo indica, e a pressão da sociedade vai nesse sentido, que aos 9 já são capazes de processar a mensagem indicada pelos anunciantes relativamente ao “perfil” adulto. É uma pescada de rabo na boca, é uma necessidade de que todas as crianças padecem... serem especiais. E muito rapidamente deixam de sentir isso no seio da família, nas motonias diárias, nos elementos “transfigurantes” do funcionamento das escolas onde andam, na competitividade desenfreada pela atenção do professor, quer pelas asneiras, quer pelas benesses, pelos resultados. O excesso de atenção parece hoje o maior problema que recai sobre as crianças que me aparecem no consultório...
Excesso de atenção que a criança aceita como natural. Aceita porque não tem consciência das “expectativas”, e esse problema é central, é central porque é um elemento determinante no momento de “apercebimento” da criança de que tem de haver reciprocidade. A forma sobre-acumulada com que a família trata uma criança durante a infância determina as suas necessidades como adulto. Esta questão está tão dissecada que fico surpreendido pela forma abismada com que os pais olham prós seus filhos sobre-carentes, que mostram essa carência através de uma sobre-agressividade, sobre exigência.
A pergunta lógica é: quantos objectos se pode dar a uma criança até que ela efective o objecto como prova de amor? Essa questão é determinante se quisermos pensar no momento determinante em que nos cruzámos com o nosso paciente adolescente. Ele entra, senta-se e que espera? Normalmente, quando lhes pergunto isto, respondem com o auto-comedimento de quem tudo tem: NADA. A problemática divisão entre o materialismo e o substracto emocional resolvida pela capacidade de “conter”, de “aguentar”, de “exigir”. Já são adultos, já conseguem reter as suas necessidades, mas fazem-no num quadro de exarcebação dos pressupostos de integração noutros grupos. Eles estão orgulhosos porque conseguiram sair de uma dependência emocional e exarcebam essa separação negando-se à entrega psicológica, à aceitação de autoridade da parte dos pais. Sendo assim, e sendo esta ligação tão evidente entre materialismo e funcionamento interno do pré-adolescente que depois condiciona o conjunto de elementos depressivos e extremativos do adolescente, será possível fazer uma efectiva terapia de adolescentes sem entender e considerar os elementos dos pais e dos meios que levaram estes a chegarem até aos seus filhos como elementos materialistas? A dificuldade em expressar sentimentos é uma constante na sociedade actual e é algo que está inerentemente ligado à falta de equilibrio nas relações entre pais e filhos do ponto de vista da emotividade.
Vamos começar por um ponto útil: o facto de não existir de facto uma interacção geracional nos dias de hoje. Na sociedade portuguesa urbana não acontece de facto uma retenção de valores que permita intransicionalidade. Ou seja, dito por outras palavras, a poule de valores de pais e filhos encontra-se practicamente ao mesmo nível. Comportamentos de risco semelhantes, formas de associação semelhantes, similaritudes no que conta a amizades, espaços de confratenização, formas de relação. Ou seja, pais e filhos partilham um mesmo espaço social numa altura em que o adolescente se quer tornar particularmente independente, daí que os seus comportamentos de risco sejam exarcebados por via do tal materialismo dissidente. Se antigamente a partilha de espaços era um factor de harmonização das gerações, hoje em dia essa partilha é vista como forma de marginalização dos próprios adolescentes. Os pais são demasiado “porreiros” portanto eles têm de ser demasiado “impopulares”, garantindo assim um capital de antagonismo necessário a que tudo aconteça de molde a agredir os pais.
Um exemplo pungente, que me deixou surpreendido, foi o facto de um casal que regularmente dava festas em que se consumiam drogas, apareceu-me com um filho que aos 10 anos já consumia drogas pesadas. Os pais estavam preocupadíssimos com a ideia de que o seu exemplo tivesse alimentado a necessidade de drogas do miúdo, apesar de ele não estar presente nessas festas. De facto, tratava-se não mais do que a necessidade de fazer com que os pais olhassem e cuidassem dele, a necessidade que o adolescente tinha de se fazer notado, que neste caso apenas era mais extensa porque se cobria de um consumo de heroina. Mais tarde e no processo de terapia o adolescente revelou-se alguém que tinha seguido o caminho oposto dos pais, altamente formal, altamente classista, sempre enredado em actividades sociais, afastando-se deles. O falhanço de uma relação com uma miúda “desse meio” potenciou uma identificação negativa que se revestiu com uma sobre-introdução nos papeis dos pais... uma forma de ser “extremamente” igual, ou seja, igual a todos os potenciais aspectos negativos, e esperar a reacção preocupada dos pais.
Os adolescentes detestam ser tidos como presentes em qualquer “norma” ao mesmo tempo que se orgulham de serem de uma “tribo”, de um grupo mais ou menos codificado. Ou seja, o “normal” são os pais, e eles pertencem a “outro” grupo, e quanto mais esse grupo fôr assustador prós pais, melhor. Claro que aqui estamos a falar de casos patológicos, é óbvio que existem miúdos mais simplistas que tentam não ostracizar demasiado os pais, dado que isso faria com que eles lhes condicionassem a vida, as saídas, os encontros. Mas esses miúdos raramente passam pela cadeira do meu consultório, normalmente safam-se na vida lidando eles próprios com as suas perdas.
Certos elementos são cíclicos, como por exemplo a sexualidade precoce nas miúdas e o a agressividade sexual nos rapazes. E também cíclica é a preocupação dos pais, que não reagem a elementos de quebra de conversação, silêncio sobre as actividades, mas que depois explodem ao saber do namorado 10 anos mais velho, do haxixe consumido no quarto. Ou seja, os pais são os primeiros responsáveis pela imagem que os filhos têm deles, do tipo: “não querias saber se eu me drogava e agora só porque sabes já é a pior coisa do mundo?” esta ideia é cimentada pela falta de preocupação do pais nos sentimentos dos filhos na terapia. O que os pais querem saber é se aquilo vai parar, se não vão ter mais preocupações. Ou seja, no contexto do funcionamento social, o que os pais querem saber em relação aos filhos adolescentes é se eles vão “funcionar” bem, o que é bastante interessante se pensarmos na tal ideia de felicidade materialista que referi anteriormente. Os pais pagaram um terapeuta, portanto a “felicidade” deve estar assegurada, foi paga, foi garantida por alguém que forneceu esse serviço. Já referi há uns meses esta situação de que pra muitos pais o terapeuta não é mais do que algo comprado pra manter o menino ou a menina feliz. E como qualquer menino irritado, o adolescente vai partir o boneco todo, vai mostrar que não precisa dele, que queria outro, que este não presta. Vai dizer que não tem nada, ou vai fazer-se vítima de uma dor tão grande que, espera ele, os pais se arrependam profundamente de todo o sofrimento pelo qual os fez passar... enfim...
Mas aqui tenho de ser sincero em relação aos pressupostos de tudo isto, não aceito que os adolescentes façam de mim gato sapato, não preciso assim tanto de dinheiro que careça de aturar estas batalhas campais em que sou apenas figurante e não interventor directo. Aliás, é dever dos próprios terapeutas dignificarem-se a si próprios, não participando nestes jogos. Compreendo que muitos de nós tenham necessidade financeiras que os levem a aceitar estes casos cíclicos, mas não se justifica ganhar mais uma pessoa e toda uma classe ser prejudicada como pessoas sem dignidade profissional...